4.3.10

Meu quase encontro com Fernando Pessoa

Às dez e vinte e sete daquela manhã um garoto de recados entregou-me a resposta da carta. Viajei em um navio chamado Henriqueta dias antes, e estava queimando de expectativas quando desembarquei e corri pelas ruas a procura de um quarto de hotel, recitando poesias em meu inglês muitíssimo ruim... poesias de Pessoa. Hospedei-me em um quarto alugado num hotel-pensão barato com banheira no toalete, o único quarto que encontrei por menos do que eu tinha no bolso (mas minhas aventuras empobrecidas não importam agora).

Havia conseguido a viagem para Portugal com os pequenos contos e textos que a revista publicou, de início não pensei em receber valor algum, era minha paixão, um desejo, ler meu nome ao sopé das páginas, e saber que aquela era mais uma história minha. Em geral eram publicadas em uma mesma revista "clandestina" que trocava de nome todo santo sábado, e se não estou enganado o nome hoje é Livre Espírito talvez Livr'espírito...Ou coisa parecida.
Um companheiro de biblioteca e longos debates sobre Heterônimos, disse-me que poderia conseguir um encontro com o cunhado do primo de um conhecido que trocava as dobradiças da porta da frente, de onde  Fernando Pessoa trabalhava, falando com o tal do trocador de dobradiças, afirmou que conseguiria para mim algumas poucas palavras ou quem sabe até mesmo um almoço com Fernando Pessoa. 

Enquanto suava e pulava de um lado para outro recebi a visita do menino de recados, entregou-me um envelope pardo, e com mãos nervosas abri com cuidado, a caligrafia estranha e manchada do trocador de dobradiças dizia que eu deveria esperar o poeta  ao meio dia em ponto próximo a um restaurante que também oferecia o serviço de engraxataria. No mesmo instante em que guardei o envelope, u
ma trovoada anunciou a utilidade da sombrinha em minha mala,
a mesma que já havia me salvado de chuvaradas repentinas. Sai tropeçando calçada a fora, temia não encontrar o restaurante, mas o garoto perguntou-me se poderia ajudar com mais alguma tarefa, assenti e expliquei a ele, o moleque de sotaque forte volveu que acharia facilmente se fosse com ele. Levamos meia hora
segundo meu relógio de pulso para chegar ao local combinado, eram quase onze e quarenta e cinco da manhã quando a chuva começou, o menino correu para se abrigar no restaurante, eu fiz o mesmo, mas logo voltei ao meio da praça para esperar olhando diretamente para a ruela que presumi ser por onde ele, o poeta... Criador de Ricardo Reis & Cia apareceria.  
As pessoas passavam apressadas com suas sombrinhas sobre a cabeça, e lá estava eu - Agora sentado em um banco, como se a chuva não batesse no chão ou molhasse o banco, mas empertigado ali me senti seguro.O mais estranho foi quando uma mulher bem vestida, bem portada também, parou alguns passos, parecendo procurar alguém, a observava com o canto dos olhos, ela veio até mim e perguntou as horas, eu respondi que eram quase doze, ao certo - Onze e cinquenta e três. Ela sorriu agradeceu e comentou que não gostava da chuva, mas teria que ficar por ali também, em seguida sentou-se ao meu lado. Ela disse que esperava alguém. Eu sorri, não queria conversar, mas ofereci a proteção da sombrinha já 
que ela preferiu ficar sentada ao meu lado. Eu estava ocupado demais pensando no que falaria para ele, o poeta. Que não me importei em dizer meu nome ou  o motivo de estar sentado na chuva. Passaram-se duas horas, uma carroça passou, e duas freiras, e também
a chuva. Continuei ali sentado, a sombrinha agora nos protegia do sol que surgiu de trás das nuvens para abafar e secar as ruelas a mim e a mulher.

Ela foi embora sem dizer mais nada  se não um "mui grata!", levantou-se e saiu a marchar em direção ao oeste, bem vestida, meio molhada. 
Esperei e esperei... Outra chuva veio, essa foi mais forte me obrigando a correr até o restaurante, esperei por mais duas horas, até voltar para o hotel frustrado. Lá encontrei um bilhete, somente um bilhete... era dele, do poeta... Me pedindo desculpas, dizendo que não poderíamos nos encontrar porque tinha de se encontrar com outra pessoa, uma mulher, mas não sabia se deveria, pois os astros diziam o contrário. Desculpou-se também por não me enviar nada (entre parênteses escreveu a palavra LIVRO) pois já havia enviado o último que possuía para a tal da mulher... (no mesmo instante eu pensei na  mulher bem vestida que sentou-se ao meu lado no banco molhado).Em letrinha miúda ele escreveu:

"Quem sabe em outra oportunidade...
Atenciosamente Fernando Pessoa".

Um comentário:

  1. Li como quem deu a primeira mordida e não podia de deixar de comer até o fim.
    Me lambusei das tuas palavras agora Rapha!

    Ficou maravilhoso!
    =D

    'Além das canelas'

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